Espiritualidade ou Fakespirituality
Encenar teatros apoteóticos ou intimistas e ir às lágrimas em devaneios de olhos retorcidos e falas ensaiadas, com gestos impactantes e tom de voz treinado e adequado para induzir estados alterados de consciência… pode ser uma grande arte ou habilidade de alguns gurus iluminados.
Mas isso não é Espiritualidade.
Espiritualidade acontece no silêncio, na intimidade. A linguagem de Deus é o silêncio – dizia Rumi e também o Mestre Eckart. O resto é tradução barata. Ou fakespirituality, para ser da moda. Não tem ensaio nem os rituais a garantem. Não é fruto de esforço pessoal nem conquista de seres iluminados. É gratuidade, incondicional, acolhida e saboreada. Não é algo que se faz, mas apenas se deixa que Deus faça em nós. É de dentro para fora e de baixo para cima… mas pressupõe o movimento de fora para dentro e de cima para baixo, descendo ao encontro da sombra da nossa condição humana, onde Deus habita e se deixa encontrar.
Espiritualidade não é sobre ser iluminado, mas sobre iluminar, a partir da luz que de dentro transborda, sem fazer barulho. O resto é show de ator de palco com microfone de Madona.
Dar show pirotécnico de emoções ou fazer truques que induzem estados emocionais alterados nas pessoas, pretensamente guiados por entidades de mundos superiores que conferem a alguém poderes mágicos ou ascendência sobre a vida de outras pessoas… pode ser realmente impactante e sedutor, pode despertar encantamento e fascínio misterioso… mas também pode ser manipulação e, definitivamente, isso não é Espiritualidade.
Espiritualidade acontece no silêncio, no encontro profundo de cada pessoa consigo mesma, no mais profundo de si mesma, onde é habitada pelo Divino que aí se deixa encontrar, no silêncio fecundo, de forma misteriosa, gratuita e amorosa.
Estados emocionais induzidos ou manipulados, de histeria coletiva ou de intimismo sentimental, provocados por um chá poderoso que se toma ou induzido por habilidades especiais de alguém, seja quem for… isso não é Espiritualidade. Espiritualidade chama ao encontro com a Sombra e aí é que ela nasce, na lama, de onde nasce o lótus e onde o Ser Humano fica de joelhos, consciente do húmus que é por ser pó e com brilho no olhar perante o Divino que o habita, tornando-se Sopro. Quanto mais perto do Humano, mais espiritual – diz Ricardo Peter. E quanto mais iluminada a pessoa se acha, mais cega pelo Ego está, com certeza.
A mãe da Espiritualidade é o encontro pessoal com Deus e a sua experiência saboreada. Se assim não for, qualquer espiritualidade será filha da outra.
E, se pelos frutos se conhece a árvore, há de ser a compaixão, o serviço ao outro, a amorosidade, a simplicidade… serenidade, humildade, veracidade, equanimidade, liberalidade, coragem, temperança, inocência e ação certa… o selo de que é filha de gente boa a nossa Espiritualidade.
Espiritualidade nasce no silêncio. Alimenta-se no silêncio. Transborda no serviço amoroso ao outro. Gera Transformação. O que aliena não é Espiritualidade, nem o que anestesia ou faz esquecer a sombra, a minha e a do mundo – isso pode ser Espiritualidade Gourmet, agradável ao paladar e chique e da moda, com condimentos exóticos… mas sem consistência e sem matar a fome e nem sempre fazendo bem à saúde. Espiritualidade transforma e compromete. O outro, especialmente o pobre… é o verdadeiro detetor de mentiras da nossa Espiritualidade. Se não passar nessa prova, é Fakespirituality, pode desconfiar.
Espiritualidade é processo… não é milagre, como a lagarta tornando-se borboleta. É caminho, não é chegada nem conquista, nem momento. É sede da Fonte… que tem sede de quem tem sede, como dizia Rumi.
Depois do êxtase, lave a roupa suja – diz o título de um livro bom. Para que espiritualidade não seja vendida como garantia de sucesso ou promessa de prosperidade, ou sequestrada pela ostentação e pela arrogância da Fakespirituality.
Querer entrar no céu sem antes entrar dentro de si mesmo a fim de considerar a sua miséria… é ilusão – dizia Teresa de Ávila. E se alguém se achar espiritual ou espiritualizado, sem antes abraçar sua criança ferida e sem antes acolher as suas sombras e integrá-las e sem antes ser humano por inteiro… ajude-o a colocar os pés no chão e a abrir os olhos, para que ele continue buscando a Espiritualidade que pensa ter encontrado. Os ramos de uma árvore só conseguem tocar o céu se as suas raízes chegarem até ao inferno – lembrava Jung e Jesus ensinou, com a vida, que a Luz vem depois da Cruz – necessariamente nessa ordem. Também Buda ensinou o caminho da Iluminação no encontro com o Sofrimento e Rumi, bebeu na mais pura tradição espiritual do Islamismo, que a cicatriz é o lugar por onde entra a luz. Fora disso… é Fakespirituality – não se iluda com purpurina, nem se contente com Rivotril, se você quer vida em plenitude. Enquanto não garantirmos o nosso direito de ir e vir, visitando a nossa infância e de lá voltando como pessoas livres… qualquer autodeclarada evolução espiritual pode ser apenas fuga. Sucesso não é sinônimo de felicidade e é mais importante ser bom do que ser feliz, pois sendo bom, você será feliz. Bom para você mesmo, bom para os outros, bom para todas as criaturas.
O sorriso artificial nos lábios e achar que está sempre tudo bem e viver na onda do pensamento positivo falando palavras de amor e derramando água com açúcar, à custa de abafar e negar e reprimir as emoções, humanas e legítimas, que nos incomodam, por virem da sombra que não queremos enxergar… isso não é Espiritualidade – pode ser apenas hipocrisia.
Estar no centro do palco e atrair os holofotes e confetes e arrancar palmas e lágrimas da plateia, comovida e encantada com a elevação espiritual de alguém que representa bem esse papel, pode ser um grande teatro… mas isso não é Espiritualidade.
Espiritualidade ninguém ensina a ninguém. E não se aprende nos livros. Ninguém ilumina ninguém. Não passa por osmose e muito menos pela normose. Não chega por diploma ou certificado de Retiro ou viagem a lugares sagrados. Não vem por imitação e muito menos por encenação. Alguém pode me ensinar o caminho da fonte, mas só eu posso caminhar até lá e beber. A água que o outro bebe, não sacia a minha sede e ouvir discursos lindos sobre a água, também não mata a sede de ninguém. Talvez por isso Jesus lembrou: não chameis a ninguém de mestre, pois pode ser um cego conduzindo outro cego.
Rituais e cumprimento de normas e preceitos, por mais lindos e recomendados que sejam pelos Livros Sagrados ou pelas Tradições Religiosas, podem ajudar a expressar e alimentar a Espiritualidade, mas não a garantem, como passe de mágica, se não houver encontro pessoal com Deus e experiência do seu Amor.
Espiritualidade não paga pedágio, a nada e a ninguém. É dom, porque tudo é Graça. Religião é a mão que aponta para lua – Espiritualidade é saborear o brilho do luar. Ficar admirando a mão que aponta para a lua… é legalismo, ou fanatismo, ou alienação. Religião é para aqueles que têm medo de ir para o Inferno – Espiritualidade é para aqueles que já estiveram lá.
Espiritualidade é livre, como o vento… que ninguém sabe de onde vem nem para onde vai, mas podemos sentir o seu efeito.
Espiritualidade é entrega, abandonar-se em Deus, perder-se para se encontrar, deixar de ser, para Ser verdadeiramente Eu e muito mais que Eu, n’Aquele que é.
Fakespirituality… vai passar, como passam as outras modas, que deixam apenas o vazio existencial que as gerou e que elas não deram conta de preencher.
Espiritualidade, continuaremos buscando… e só nossa sede nos guia!